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O advogado no direito de família: emoções e contratransferência à luz da psicanálise
Carlos Eduardo Lamas[1]
INTRODUÇÃO
A produção doutrinária no campo jurídico tradicionalmente concentra-se nos diversos ramos do Direito — como o Direito Civil, Penal, Empresarial, do Consumidor, bem como nas disciplinas de Direito Processual. Entretanto, observa-se uma lacuna significativa quanto à análise dos aspectos psíquicos envolvidos na atuação profissional do advogado.
A subjetividade do operador do Direito, seus mecanismos de funcionamento mental e os efeitos emocionais decorrentes da escuta e condução do conflito jurídico permanecem, em grande parte, negligenciados na literatura especializada. Pouco se discute, de forma sistemática, sobre como os processos inconscientes, os atravessamentos afetivos e os mecanismos de defesa se manifestam no exercício da advocacia, especialmente diante da constante exposição ao sofrimento alheio, à disputa e à responsabilização. Tal invisibilidade acadêmica limita a compreensão integral do fenômeno jurídico, sobretudo no que diz respeito às dimensões intersubjetivas e emocionais que permeiam a prática forense.
Talvez o conservadorismo da classe proíba sair da zona de conforto, impedindo o ingresso em um campo conceitualmente complexo para quem tem formação exclusivamente jurídica. Desta forma, fica o advogado adstrito e dependente de suas qualidades individuais para percorrer seu próprio psiquismo.
A psicanálise interessa ao direito como um sistema de pensamento, e discurso, que desconstrói fórmulas e dogmas jurídicos a partir da compreensão do sujeito do inconsciente, do desejo e da sexualidade[2]
Desta forma, o presente capítulo busca aprofundar, reflexivamente a influência, através da contratransferência, de toda emoção que envolve a relação do advogado que atua em contextos familiares e seus clientes, que abertamente despejam todos seus sentimentos e desejos ao advogado de confiança.
Se cada profissional recebe de uma maneira as informações fornecidas pelo cliente, decerto que a maneira de atuação deste profissional vai depender de todo seu funcionamento emocional, relacionando-se às vivências deste advogado e a sua psiqué.
Para elaboração do presente capítulo, é necessário entender primeiramente o fenômeno da contratransferência clínica genuína, advinda do estudo psicanalítico. Também é necessário analisar profundamente a atuação peculiar do advogado que atua nas varas de família, para então podermos entender a aplicação da contratransferência na relação do advogado com o seu cliente e as maneiras que podem afetar de maneira positiva ou negativa a atuação do advogado.
A CONTRATRANSFERÊNCIA CLÍNICA.
O estudo do fenômeno da contratransferência está intimamente ligado ao da transferência, de forma que ambos são indissociáveis, um não existe sem o outro, pois, muitas vezes, se superpõem e se confundem entre si.
Logo, para entendermos o fenômeno da contratransferência, necessário se faz a conceituação da transferência.
De acordo com Laplanche e Pontalis, a transferência consiste no “processo pela qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica”.[3]
Nunberg, citado por Jorge Trindade, ensina que:
“a transferência é um termo autoexplanatório e significa que afetos e ideias são transferidos de uma situação para outra, prevalecendo a tendência de fazer com que impressões do passado se sobreponham a impressão do presente. Implica a reagir em situações atuais como se fossem aquelas vividas no passado, mostrando uma tendência a repetir antigas vivências e de encontrar semelhança do passado que se aplicariam ao presente, uma forma de reviver experiência antigas aqui e agora.”[4]
Já em relação à contratransferência, tivemos uma evolução no conceito. A primeira, na ideia de Freud, em 1910, que entendia ter a contratransferência várias fontes inconscientes nos conflitos neuróticos do analista, reativados pelo contato com os conflitos infantis do analisado. Freud ainda entendia que a contratransferência é como uma resistência do terapeuta, a qual deveria ser eliminada pela autoanálise ou terapia pessoal. Tal perspectiva negativa permaneceu e prevaleceu na literatura psicanalítica por várias décadas.
A partir dos trabalhos de Paula Heimann e Heinrich Racker, provocou-se uma ampliação ao conceito, utilizando-se um conceito “totalístico” de contratransferência, considerando um fenômeno normal do processo terapêutico, instrumento imprescindível para a interpretação. Nesta mudança conceitual, a contratransferência contempla elementos da realidade da relação analista-analisado, abrangendo reações inconscientes e conscientes.[5]
Observa-se então que através da constante interação entre analista e paciente implica em um processo de recíproca introjeção das identificações projetivas do outro. Quando ocorre esse fenômeno, especificamente na pessoa do analista, pode mobilizar neste, durante a sessão, uma resposta emocional na forma de um conjunto de sentimentos, afetos, associações, fantasias, evocações, lapsos, imagens, sonhos, sensações corporais, etc.[6]
Assim, o fenômeno contratransferencial resulta das identificações projetivas oriundas do analisando, as quais provocam no analista um estado de contra identificação projetiva. Segundo conceituação de Grinberg (1963) os conflitos particulares do analista não são os que determinam a contratransferência, o que simplesmente acontece é que o analista fica impregnado com as maciças cargas da identificação projetiva do paciente e fica sendo, passivamente, dirigido a sentir e a executar determinados papéis que o paciente “colocou” e despertou dentro do terapeuta.
Alguns aspectos da contratransferência geram controvérsias, dentre eles se o fenômeno durante a sessão é unicamente inconsciente ou também pode ser consciente, ou ainda se a contratransferência pode ficar a serviço da empatia e da intuição.
M. Kyrle, autor Kleiniano, que estudou mais profundamente o fenômeno da contratransferência, nos ensina que existem três aspectos essenciais: 1) O analista deve, silenciosamente, reconhecer que de alguma forma ele está emocionalmente perturbado no campo analítico. 2) Tentar reconhecer quais foram “as partes do paciente” que lhe provocam essa reação. 3) Quais são os efeitos que estão operando sobre ele.
A perspectiva contemporânea da contratransferência, nos indica que o manejo dos próprios sentimentos inconscientes durante a análise é tarefa complicada para qualquer analista por envolver questões de cunho pessoal nem sempre elaboradas. Entretanto, diferente da perspectiva clássica sobre a contratransferência, a contemporânea aborda esse conflito como parte da análise e define a contratransferência para além da reação emocional do analista para com o seu paciente. Assim, abre a possibilidade de a contratransferência ser utilizada como instrumento analítico ao possibilitar a compreensão da relação transferencial e do psiquismo do paciente.[7]
Portanto, com o crescente estudo da mente do analista, cada vez mais se procura levar em consideração como funciona sua mente em contato com a do paciente e identificar as encenações produzidas nessa relação mutuamente provocadora de emoções e estado psíquicos complexos. Logo, a contratransferência também pode ser influenciada por questões de gênero e o momento do ciclo vital do paciente e terapeuta e constitui uma área de crescentes pesquisas em psicanálise e psicoterapia analítica.[8]
Decerto que os efeitos da contratransferência podem assumir na mente a na atitude psicanalítica do terapeuta várias reações, dentre elas de configurar em uma forma de contratransferência patológica com todos prejuízos daí decorrentes, a outra, uma vez reconhecida conscientemente pelo analista a contratransferência pode se transformar em uma excelente bússola empática.[9]
Talvez essa capacidade de escuta refinada — que, na clínica psicanalítica, se expressa pela contratransferência reconhecida e elaborada — possa ser transposta, com as devidas ressalvas, à atuação do advogado na seara do Direito de Família. Nessa perspectiva, a contratransferência, quando manejada de forma consciente e ética, transforma-se em uma espécie de 'bússola empática', apta a orientar o profissional na escuta sensível do sofrimento do outro, permitindo-lhe captar nuances subjetivas que escapam ao discurso meramente racional ou jurídico. Essa escuta ampliada, sustentada por um olhar atravessado pela ética do cuidado e da alteridade, revela-se um instrumento essencial à prática do advogado familista, cuja atuação frequentemente transita entre afetos intensos, rupturas simbólicas e demandas emocionais profundamente enraizadas.
A RELAÇÃO ENTRE O ADVOGADO QUE ATUA EM CONTEXTOS FAMILIARES E SEUS CLIENTES.
A origem da profissão é bastante controversa entre os estudiosos, não havendo dados precisos para defini-la, mas não se nega que o berço da advocacia, enquanto atividade exercida por profissionais para defender os cidadãos, remonta a Atenas, na Grécia.
Já no Brasil, a advocacia remonta ao período colonial. Tanto no Brasil colonial quanto no Brasil império, o exercício da profissão guardava estreita ligação com a história da profissão em Portugal, tanto é que as Ordenações Afonsinas e Filipinas, as quais disciplinavam acerca da advocacia, exigiam que os letrados que queriam advogar no país tivessem cursado Direito Canônico e/ou Civil na Universidade de Coimbra, tratando-se de uma formação totalmente voltada ao liberalismo individualista.[10]
Porém, somente com a Constituição Federal de 1988 é que o exercício profissional da advocacia teve a importância merecida, com forte regulação ética e disciplinar, reconhecendo ainda que o advogado é indispensável à administração da justiça.[11]
Assim, também se estatuiu de uma função social, pois além de representantes dos interesses individuais de seus clientes, o advogado passou a ser representante também dos interesses públicos.
Miguel Reale Junior, com muito saber, ministra que o advogado é aquele que fala pelo outro, mas é mais do que isso. O advogado é aquele que se identifica com o outro que nele confia; é quem vive o sofrimento e a angústia do que o outro vivencia, por um processo simpático à experiência do outro.[12]
No que se refere a advocacia familista, geralmente o advogado, é sempre o primeiro profissional a ser procurado para auxiliar os envolvidos em qualquer espécie de conflito que não se consegue ser solucionado no seio familiar, exigindo, por isso, a busca por respostas jurídicas — tal como ocorre em outras áreas do Direito..
A contratação e a escolha do advogado que representará uma das partes no processo estarão sempre ancoradas na confiança, elemento que sustenta a relação entre advogado e cliente. Tal vínculo se torna ainda mais sensível nos litígios familiares, em que, com frequência, são reveladas pelo cliente experiências profundamente íntimas e dolorosas
A ideia desse advogado, sensível, atento a escuta, sem preconceitos ou julgamentos de cunho moralista, vai ao encontro da repersonalização das relações familiares, na medida que há uma valorização no interesse da pessoa humana e, acima de tudo, o reconhecimento do afeto como valor jurídico.
A atuação do advogado na seara do Direito de Família reveste-se de particularidades que a tornam profundamente singular. Raras são as ações que não estejam impregnadas por afetos intensos: amor, ódio, alegria, tristeza, nascimento ou morte. Ainda que tais experiências não se apresentem em seu sentido literal, elas se manifestam simbolicamente — como a 'morte' psíquica representada pelo rompimento de um vínculo conjugal ou o 'nascimento' subjetivo decorrente da constituição de uma nova união.
Adotar uma escuta sensível e um olhar psicanalítico sobre tais contextos permite compreender que o litígio familiar ultrapassa a racionalidade jurídica, exigindo do advogado não apenas técnica, mas também disponibilidade emocional e ética relacional, pois conforme menciona SARTI, a família é o espaço social onde se realizam os fatos da vida, vinculados ao corpo biológico, como o nascimento, a amamentação, o crescimento, o acasalamento, o envelhecimento e a morte.[13]
É no direito de família que a subjetividade se presentifica mais forte dentro do direito, muito em razão da singularidade dos sujeitos envolvidos. Sendo assim, o Advogado que milita nesta área tem uma responsabilidade extra: não deve ele ser objeto de gozo daquele cliente. O advogado familista tem o compromisso constitucional[14], como cidadão, de proteger e preservar o interesse das crianças e adolescentes, assim como de qualquer pessoa vulnerável que esteja envolvida no processo judicial - crianças essas que, muitas vezes, são utilizadas como objeto pelos pais que as disputam como um troféu.
Acaba-se, por vezes, sendo o advogado familista e o judiciário um instrumento de gozo na realização de um desejo inconsciente, transvestido em outra cena, de ordem subjetiva e a compreensão desta cena é não permitir ser este instrumento de ilusão de satisfação do desejo oculto, é barrar o gozo, o excesso.[15]
É essencial que o profissional do Direito, sobretudo aquele que atua na esfera familiar, possua ao menos noções elementares de psicanálise, de modo a ampliar sua compreensão acerca da estrutura do litígio que lhe é apresentado. Tal saber lhe permite decifrar, com maior acuidade, o funcionamento psíquico dos sujeitos que compõem a cena jurídica — suas repetições, defesas, deslocamentos e projeções — favorecendo uma atuação mais ética, afinada não apenas com os limites legais, mas também com o desejo inconsciente de seu cliente, muitas vezes encoberto por demandas formais que não traduzem seu verdadeiro conflito
O dado fundamental que faz do advogado familista e do psicanalista terem funções parecidas (nunca iguais) é que passam, ambos a serem instrumentos valiosos na escuta daquele que trás as informações (cliente ou paciente), uma vez que toda perturbação psíquica, mental, comportamental (as duas primeiras quase sempre acabam repercutindo no comportamento humano) decorre da história inconsciente do sujeito, do lugar que ele ocupa na família e de sua relação com o ambiente social. Assim, quando o advogado interpela seu cliente e o questiona sobre todos os fatos que antecederam o sofrimento familiar gerador do fracasso de um projeto comum é porque está perscrutando a alma humana de modo a buscar as razões que o levaram a agir desta ou daquela maneira, procurando minorar seu sofrimento e daqueles que o cercam. [16]
É possível observar, nos litígios que tramitam nas Varas de Família, que, por vezes, um simples processo de divórcio representa, na verdade, o último suspiro na tentativa de preservar um vínculo — ainda que marcado pela patologia — com aquela figura amada e odiada simultaneamente. Do mesmo modo, uma ação de alimentos proposta em nome de um filho pode encobrir, no fundo, o desejo inconsciente de ver-se indenizado por uma traição passada. São inúmeros os exemplos que evidenciam como o processo judicial pode servir como pano de fundo para a satisfação de desejos ocultos, não verbalizados nos autos. Como bem observou o Ministro Antonio Cezar Peluso, o que se presencia nas Varas de Família é 'tristeza, silêncio e ódio'.[17]
Por certo, essa intenção de utilização do poder judiciário ou do advogado para satisfação do gozo, seja pelo amor, seja pelo ódio, causa com certeza malefícios àqueles sujeitos litigantes que nem mesmo notam o mal que fazem a si mesmos e principalmente aos filhos.
Compete ao advogado familista o dever ético de mitigar os danos emocionais decorrentes do litígio, assumindo uma postura que ultrapasse a letra dos autos e alcance a complexidade subjetiva das relações em disputa.
Importante para a atuação do advogado que milita no direito de família é de não contribuir com o sofrimento do cliente, mesmo que ele não consiga reconhecê-lo. Perceber se a sustentação do litígio é verdadeiramente benéfica tanto economicamente como emocionalmente para o cliente é uma obrigação do causídico familista, que deverá sempre levar em consideração a possibilidade de composição do conflito através de técnicas e modelos alternativos.
Em verdade, a formação do advogado, desde a faculdade é para litigar, todavia, para sustentar o que afirmamos acima, o litígio é o pior cenário para minimizar os danos emocionais. Nesse diapasão, faz-se necessário repensar sobre esse novo papel que o advogado deve desempenhar na sua prática profissional e pessoal, enriquecidos pelo aporte das novas técnicas de resolução de conflito.
Cabe aos advogados que atuam no direito de família, a partir da compreensão desses elementos subjetivos que levam o sujeito ao seu escritório, mostrar que o verdadeiro interesse na demanda não é sempre aquele que por vezes é apresentado. Saber distinguir os elementos subjetivos daqueles objetivos faz com que o advogado consiga organizar um texto jurídico mais adequado, encaminhando o litígio para uma melhor resolução, afastando-se da lógica retrógada do ganha/perde, abrindo-se um novo espaço e uma nova forma de lidar com o conflito, através de um olhar construtivo, em que todos ganham, inclusive o advogado, como bem explicam Fernanda Molinari e Marilene Morodin.[18]
David Zimerman enfatiza a importância de advogados e magistrados terem um domínio relativamente seguro daquilo que se passa nos meandros do inconsciente dos indivíduos, casais e grupos, camuflados nas dobras de um processo judicial.[19]
A postura do advogado familista, deve ser de não se deixar envolver pela atmosfera revanchista que é despejada na maioria das vezes pelo cliente, impondo limites firmes no que diz respeito ao espaço e tempo que o cliente tem com o advogado, fazendo reconhecer enfaticamente as inevitáveis limitações que o próprio processo encerra, mas que muitas vezes o sujeito entende poder exigir do profissional, não devendo então o advogado se intimidar frente as investidas do cliente, pois caso contrário, perderá a serenidade para a tomada de uma posição coerente, consistente e técnica, não perdendo a indispensável manutenção da hierarquia do profissional com o cliente, ainda que implique o risco de perdê-lo, pois como bem expressa o advogado Conrado Paulino da Rosa, “o advogado é o dono do processo”.
A possibilidade de perda do cliente é bem exposta por David Zimerman, quando faz uma analogia com aquilo que se passa na área clínica psicoterápica, afirmando que:
“os assim chamados impasses psicanalíticos somente serão resolvidos quando o analista prossegue trabalhando sem deixar intimidar pelas ameaças de algum determinado paciente nessas condições, sem perder o seu lugar e o seu papel no par analítico”. [20]
A experiência nos mostra também a necessidade e a importância de que em certos casos se encaminhe o cliente para espaço psicoterápico, com o intuito principal de fazer com que este possa reorganizar seu espaço mental e por conseqüência consiga visualizar a real idéia do contexto litigioso, chegando enfim ao que podemos afirmar como sendo o gozo verdadeiro, a satisfação real e não aquela falsa, transvertida em ação judicial.
Todavia, a atuação do advogado não pode, em hipótese alguma, confundir-se com as atribuições próprias de psicólogos ou psicanalistas. A afirmação, por vezes repetida, de que o advogado seria 'um pouco psicólogo' constitui uma inverdade — e, mais que isso, um desmerecimento à relevância técnica e ética do trabalho desenvolvido pelos profissionais da psicologia. Não se admite que o advogado intervenha com pretensões analíticas, confundindo a necessária interlocução entre Direito e Psicanálise com uma prática híbrida e imprópria. A cada profissional cabe atuar dentro dos limites de seu campo específico. Não se pode pretender psicanalizar o Direito, tampouco jurisdicionalizar a Psicanálise. O que se exige é o respeito à integridade de ambos os saberes, para que o diálogo entre eles permaneça fértil e ético.
O advogado no direito de família precisa, além de uma boa vontade de escutar, uma escuta qualificada, porém nunca submeter o cliente a uma análise psíquica, ou seja, não pode ser uma escuta analítica. Caso o advogado, erroneamente, se apossar desta atribuição, corre-se o risco de trazer questões que - não bem elaboradas - podem trazer sérios danos ao cliente.
Logo, o grande desafio do advogado familista reside em decifrar a realidade da mensagem inconsciente que se oculta, disfarçada, no discurso manifesto do sujeito. Em outras palavras, cabe-lhe — ainda que dentro dos limites de sua atuação jurídica — exercitar uma escuta atenta àquilo que se insinua nas entrelinhas, ao não dito que ressoa no dito. Ou, valendo-nos da formulação lacaniana, trata-se de escutar o que está entre o que foi dito e aquilo que ainda resta por dizer.
A CONTRATRANSFERÊNCIA NA ATUAÇÃO DO ADVOGADO FAMILISTA
Existe pouca literatura que desenvolva o assunto da contratransferência para além do setting terapêutico, talvez por continuar ser considerada nos estritos limites da relação terapêutica e não um fenômeno universal ínsito às relações interpessoais, mesmo que Freud nunca tenha descurado recomendar sua abrangência. Com efeito, o fenômeno da contratransferência constitui um acontecimento da vida psíquica absolutamente geral, embora na relação analítica sejam suscetíveis de uma utilização técnica, pois que advindas com maior impacto.[21]
Partindo-se do pressuposto de que não existe ato humano que não esteja sustentado na subjetividade, se faz concluir que a atuação do advogado frente ao seu cliente se faz impossível sem a contratransferência.
Todo o advogado tem o direito de sentir difíceis sentimentos contratransferenciais, como medo, dúvidas, raiva, excitação, confusão, tédio, entre outros, pois antes de ser um causídico, é um ser humano.
Por certo, as atitudes de um advogado em relação ao seu cliente também derivam de vivências anteriores, experiências pessoais e situações subjetivas que, muitas vezes, são deslocadas para a relação profissional, configurando o fenômeno da contratransferência também no ambiente do escritório de advocacia. Assim, a reação do advogado pode estar influenciada não apenas pelos fatos indicados pelo cliente ao caso, mas também por seus próprios conflitos inconscientes.
O que diferencia a contratransferência em ambiente terapêutico daquela ocorrida dentro do escritório de advocacia é que no primeiro os aspectos inconscientes são reavaliados em regime de supervisão, ao passo que no segundo não existe tal possibilidade, o que deixa o terreno do advogado muito mais sujeito a intervenções sem domínio de organização mental, o que lhe causa um risco maior de prejuízo em sua atuação.
Ao advogado, pela sua expertise, cabe, nessas situações, escutar as vozes do interior, reconhecendo os aspectos contratransferenciais negativos, reencontrando um equilíbrio, aproveitando-as de maneira a otimizar seu trabalho, caso o contrário, ao notar que tais vozes prejudicam sua advocacia, é aconselhável o procedimento terapêutico de forma a organizar tais ruídos.
Por certo que o advogado se humaniza ao aprender a se colocar na situação do cliente e ao se dispor a responder por quem se põe sob sua proteção. Esse exercício por um processo simpatético de viver a experiência do outro, se da com excelência através de uma conscientização do fenômeno contratransferencial. A contratransferência transformada em empatia corresponde ao que Racker denominou como “contratransferência concordante”. Afirma-se ainda, para melhor compreensão, que o termo empatia, nesta conjuntura significa a capacidade de o advogado sentir em si, para poder entender a subjetividade do que o cliente lhe passa, através de uma adequada identificação projetiva e introjetiva.
Acontece que o advogado desfamiliarizado com a psicanálise, tende a confundir empatia com uma simples intuição. A primeira, mais própria da área afetiva, enquanto a segunda refere-se a um terreno ideativo.
Há outras razões determinantes na vida do advogado — razões que não pertencem ao mundo visível e aparente, mas que se ocultam por trás de toda a sua história de vida, e que influenciam aquele que, ali, recebe toda a carga emocional, as frustrações e os afetos do cliente.
A contratranferência é mais um ponto de encontro entre direito e psicanálise, aparentemente opostos, já que um lida com a subjetividade e o outro com a objetividade, como bem salienta o jusfilósofo Pierre Legendre, citado por Rodrigo da Cunha Pereira[22], mas tão presente em ambiente jurídico como no da terapia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Forçoso concluir que existe a influência dos sentimentos na atuação do advogado frente seu cliente, uma vez que a contratransferência pode ser observada em toda e qualquer relação, sendo ainda mais presente na relação do advogado familista, tendo em vista toda a carga emocional que envolve um processo judicial ou até mesmo um procedimento extrajudicial que envolvam contextos familiares.
Daí a importância de o advogado ter o conhecimento sobre a psicanálise e especificamente sobre a contratransferência, uma vez que sendo conhecedor do fenômeno fica possibilitado sua identificação e sua utilização de maneira positiva em sua atuação.
O risco de prejudicar o trabalho do advogado por intensos sentimentos negativos é latente, devendo-se manter alerta para uma potencial distorção do caso concreto, geradas por esses sentimentos contratransferenciais que retiram do advogado toda a lucidez e técnica exigida para o exercício da profissão.
Conforme M. Kyrle, citado anteriormente, podemos adaptar os três aspectos essenciais da contratransferência para a atuação do advogado, qual seja, reconhecer que de alguma forma ele está emocionalmente perturbado naquele determinado caso, tentar reconhecer quais foram “as partes do cliente” que lhe provocam essa reação e por fim, entender quais são os efeitos que estão operando sobre ele a contratransferência.
Entendemos ser essencial para a atuação do advogado o reconhecimento do fenômeno contratransferencial para que tenha uma possibilidade de entendimento e dinâmica, não ficando envolvido de forma patológica de modo que consiga transformá-la em algo positivo e até mesmo empático, a fim de conseguir ter uma atuação de excelência e otimizada.
Diante da complexidade crescente dos vínculos humanos e da evidente sobreposição entre o campo jurídico e o campo afetivo, torna-se não apenas necessário, mas impositivo, repensar o Direito — especialmente o Direito de Família — à luz das contribuições da psicanálise. A atuação do advogado, enquanto sujeito implicado na escuta e condução de demandas que transbordam os limites da razão jurídica, exige um olhar mais atento às dimensões inconscientes que atravessam o litígio.
Ainda que pouco difundido na literatura especializada, o diálogo entre Direito e Psicanálise revela-se urgente e fecundo. Fica, portanto, o convite — não meramente sugestivo, mas ético e profissional — para que os operadores do Direito se abram à escuta analítica, reconhecendo na psicanálise um instrumento precioso de interpretação e cuidado, sobretudo para aqueles que atuam em contextos familiares, onde o afeto não é coadjuvante, mas protagonista.
REFERÊNCIAS
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[1] Advogado, Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Presidente do Núcleo Região Sul do Instituto Brasileiro de Direito de Família IBDFAM – Seção RS. Conselheiro da OAB – Subseção Pelotas/RS. Delegado da Escola Superior da Advocacia – ESA – da OAB Subseção Pelotas/RS. Vice-Presidente da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB Subseção Pelotas/RS. Formado em Psicologia Forense pela Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica –SBPJ. Psicanalista em formação pela Sociedade Sul-Brasileira de Psicanálise – Psychecsul.
[2] Disponível na URL: https://www.conjur.com.br/2018-dez-09/processo-familiar-importancia-conexao-entre-direito-familia-psicanalise.
[3] LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J-B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1983, 7ª edição.
[4] TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito. 8. rev. atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017.
[5] BARROS, Alcina Juliana Soares. A contratransferência nas perícias psiquiátricas e psicológicas em contextos de crimes sexuais, In: TRINDADE, Jorge, MOLINARI, Fernanda (org). Temas de psicologia forense: Porto Alegre: Imprensa Livre, 2015.
[6] ZIMERMAN, David E. Manual de técnica psicanalítica: uma re-visão. Porto Alegre: Artmed, 2004.
[7] Leitão, Leopoldo Gonçalves. Contratransferência: uma revisão na literatura do conceito. Análise Psicológica. 2003.
[8] EIZIRIK, Cláudio Laks; AGUIAR, Rogério Wolf de; SCHESTATSKY, Sidnei S.- organizadores. Psicoterapia de orientação analítica: fundamentos teóricos e clínicos. – 3. ed. – Porto Alegre: Artmed, 2015.
[9] ZIMERMAN, David E. Manual de técnica psicanalítica: uma re-visão. Porto Alegre: Artmed, 2004.
[10] PELLEGRINI, Carolina Portella. Mediação: usos e práticas dos advogados em conflitos familiares judicializados – Curitiba: CRV, 2018
[11] Artigo 133 da Constituição Federal e artigo 2º, caput, da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e Ordem dos Advogados do Brasil).
[12] NEVES, José Roberto de Castro. Como os advogado salvaram o mundo. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. 09 pag.
[13] SARTI, Cynthia Andersen. A família como ordem simbólica. Psicologia USP, São Paulo, v. 15, 2004.
[14] Constituição Federal, art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[15] CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios Fundamentais norteadores do direito de família. – Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
[16] LEITE, Eduardo de Oliveira. A Psicanálise e o Advogado. Aspectos psicológicos na prática jurídica. ZIMERMAN, Davi, org. 4. ed. – Campinas-SP: Millennium Editora.
[17] PELUSO, Antonio Cesar. “O menor na separação”. In: Repertório de Jurisprudência e Doutrina sobre Direito de Família. Vol. 1.
[18] MARODIN, Marilene; MOLINARI, Fernanda (organizadores). Mediação de Conflitos: paradigmas contemporâneos e fundamentos para a prática. – Porto Alegre: Imprensa livre, 2016
[19] ZIMERMAN, David, COLTRO, Antonio Carlos Mathias e BIZZI, Idete Zimerman, organizadores. Aspectos psicológicos na prática jurídica. 4. ed. – Campinas, SP: Millennium Editora, 2018.
[20] Idem, 4
[21] TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito. 8. rev. atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017.
[22] CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios Fundamentais norteadores do direito de família. – Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
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